Conhecimento

Duas da madrugada, um homem pára em frente a sua porta. Durante todo tempo que levou para percorrer o caminho do bar onde estava até sua casa, esteve cabisbaixo e pensativo. Na sua concentração, sequer notou a velha prostituta que o assediava a algumas esquinas atrás, os ratos e as poucas pessoas que passavam ao seu lado.
Ainda cabisbaixo, retirou a chave do bolso e abriu a porta. O cheiro de mofo que saiu da casa fez-lhe recordar sua solidão. As duas únicas almas viventes que poderiam fazer-lhe companhia desceram da mesa e se esconderam embaixo do armário quando ele acendeu a luz. “Até as baratas fogem de mim”, pensou. Sentou-se na velha cadeira de madeira, recolheu uma guimba de cigarro do cinzeiro e a acendeu. Deu um trago, soprou a fumaça e esta ao subir e pouco a pouco desaparecer relembrou-o daquilo que durante toda a noite não conseguira esquecer: o quão efêmera era sua vida.
Essa idéia há muito o perturbava, mas nos últimos dias era constante. Bem quisera ele agora ter alguém ao seu lado, alguém com quem pudesse conversar sobre o jogo de futebol do domingo passado, sobre o final da novela das oito, sobre a alta do dólar, enfim, sobre qualquer banalidade que lhe tirasse da cabeça essa idéia. Se tivesse notado aquela prostituta certamente também a assediaria, por mais velha e desdentada que fosse, se tivesse percebido os ratos ou as pessoas que por ele passavam provavelmente tentaria com eles travar algum diálogo. Mas quando saiu do bar já havia sucumbido a seus pensamentos, que consumiam toda a sua atenção.
Quão efêmera era sua vida. Certamente não só a sua, mas se com as outras pessoas fosse diferente isso não o comoveria, pois sua condição permaneceria a mesma e era apenas isso que importava.
E o problema não era exatamente o fato de sua existência ter fim, mas o fato desse fim chegar antes que ele pudesse encontrar as respostas pelas quais buscava, que se fossem encontradas talvez lhe trariam tranqüilidade na hora de sua morte. Mas ele sabia que não teria tempo para realizar tal feito. “Quem sou eu?” Sua carteira de identidade amassada, com sua foto amarelada certamente não o responderiam. Morreria pois sem saber realmente quem era, o que era. “De onde eu vim, para onde eu vou?”.Sabia que ia de casa para o trabalho, do trabalho para o bar e do bar para sua casa. Mas para ele isso não era o suficiente. Acreditava que seu ponto de partida antecedia sua vida e se viesse a chegar a algum lugar não seria por suas pernas, pois já não existiria, mas pelas pernas dos homens que lhe sobrevivessem. Mas aonde? No fim, no começo? Isso não sabia. Nem mesmo tinha certeza se só sabia que nada sabia ou se o fato de saber isso demonstrava que sabia de algo. Enfim, só lhe restavam dúvidas, que jamais veria dissipadas.
Cansado, apoiou os cotovelos na mesa suja, esfregou os olhos e deu um gole no litro de cachaça que estava sobre a mesa. Talvez esse fosse seu único amigo. Esse pensamento fez-lhe sorrir e na tentativa de desviar a atenção de si, começou a refletir sobre a existência do litro que sentava-se à sua frente. De gole em gole sentia decifrar a ontologia da garrafa e, quando bebeu-a inteiramente, no meio de sua embriaguez, sentiu que havia absorvido sua idéia. Ante a felicidade que lhe proporcionou tal conclusão, vomitou, e, pasmo, contemplando seu vômito, descobriu sua essência!
O vômito espalhado pelo chão dizia mais dele que sua carteira de identidade, seu fedor parecia mais com ele do que sua foto amarelada. Entendia agora o que era: algo asqueroso, fétido, composto por restos. Compreendia agora que vinha de um momento qualquer, não importava se do primeiro ou do último gole, e que como aquele vômito no chão acabaria, secaria naturalmente ou seria arrebatado por um pano imundo, só restando o seu fedor que pouco a pouco também desapareceria, não causando incômodo ou recordação a ninguém que por ali viesse a passar. Nesse momento entendeu o ser. Depois do seu desmaio, o nada!
Se nesse instante ainda lhe restasse um pingo de consciência veria que nada mais havia para perguntar, pois nada mais havia para saber.Veria que todas as glórias que imaginava estarem ocultas na verdade nunca existiram, a superioridade que pensava possuir nada mais fora do que ilusões criadas para esquivar-se da óbvia mediocridade de sua existência. Mas certamente, quando amanhecer o dia, ele se levantará do chão e, sem recordar das conclusões que chegou no apogeu da sua embriaguez, caminhará para o banheiro, lavará seu rosto e, ao olhar-se no espelho, lembrará apenas das perguntas que o consomem e, resignado, escovará seus dentes para ir ao trabalho, pois já está atrasado.