Escolha

João senta-se no chão da sala de sua casa quase nua com sua meia garrafa de cachaça na mão. Nada mais espera da vida senão uma reconfortante ressaca. “Por que tinha de ser assim meu Deus?”. Seus 32 anos de vida são um enfadonho amontoado de desgraças, decepções e misérias. Seu emprego mal o alimentava, sua esposa havia deixado-o, de sua família nunca gostou, os seres humanos a todos sempre desprezou. Quisera ele saber como seria ter uma vida com a qual pudesse se orgulhar de estar vivo. Olha para a garrafa de bebida em sua mão, seu único alento nessa sua história fatídica, sua fiel companheira nas noites depressivas dessa sua vida. E até ela está chegando ao fim. A garrafa, não sua vida, pois esta teima em agarrá-lo pelo pescoço e nunca deixá-lo partir. E não se pode dizer que fora por falta de tentativas. Porém, sempre quando João aprontava seu nó, inevitavelmente pensava na ex-mulher que a qualquer hora podia telefonar, ou na promoção do emprego que poderia ganhar, ou sentia a esperança de algum dia encontrar alguma pessoa que o compreendesse e com quem pudesse conversar, ou então qualquer outro fato, por mais irrisório que fosse, que pudesse dar sentido à sua existência. Sempre a esperança de alcançar alguma felicidade, esperança essa que nunca viu se concretizar.
E assim João passa mais uma noite de sábado, gole após gole imaginando aquilo que nunca terá. E a cada gole de cachaça, a cada rasgo em sua garganta, a cada ânsia de vômito contida, a cada golfada expelida, aumenta o ódio que João tem de si mesmo, de sua incapacidade de reagir, seja pela vida ou seja pela morte, quer viver mas não consegue, quer morrer mas não consegue, quer desmaiar bêbado mas não consegue, quer explodir o mundo mas não consegue, e seu sangue ferve, suas mãos tremem, sua revolta contra si aumenta e ao olhar a garrafa agora já vazia em sua mão, a fúria toma conta do seu corpo e com ódio nos olhos levanta-se João do chão e arremessa o continente inútil contra  a parede de sua sala vazia praguejando contra o Deus que o criara e como um pai alcoólatra que sai pra comprar cigarros o abandonara:
— Desgraça, Capeta, Demônio, Satanás!
A garrafa lança seus cacos por todos os lados, explosiva como a fúria de João, e o cheiro de álcool toma conta do ambiente. Depois do ruidoso estrondo, fica apenas um sereno silêncio, no qual João ouve apenas o som de sua respiração ofegante, que vai ficando cada vez mais lenta, cada vez mais calma. Até que enfim ouve o silêncio absoluto. Sem respiração, sem carros nas ruas, sem cachorros latindo na noite, sem bêbados cantando amores pelas esquinas. E então esse silêncio é quebrado por aquela voz suave:
— Que queres de mim Jão?
Assustado, João vira-se e se depara com a mais bela criatura na qual seus olhos já haviam repousado. Um jovem de longos cabelos louros, de límpidos olhos azuis, vestido de branco e com um rosto que emanava uma suave luz, sentado na mesinha no meio de sua sala.
João fica estático, não sabendo se o que via era real ou criação da cachaça. Estava tendo alucinações novamente? Havia desmaiado e agora estava sonhando? Seu fígado doente finalmente o havia matado? Boquiaberto e trêmulo, depois de alguns instantes de inércia que não poderia mensurar, João consegue balbuciar suas primeiras palavras depois do susto:
— Quem... quem é você..? Um anjo..? Deus!
— Ahahaha! Deus? Foi a ele quem você chamou? Você realmente acha que, aquele que o abandonou neste mundo, agora abandonaria o paraíso para vir te encontrar neste antro cheio de baratas e cheirando a vômito? Sua burrice não compete com a sua infelicidade Jão, pois todo homem burro é feliz! Sou Lúcifer, ou como me chamas, Capeta, Demônio, Satanás! E por teres me chamado, aqui estou. Sou o seu gênio da lâmpada, seu bilhete premiado. Faça o seu pedido, um único pedido, e ganhe seu prêmio. Peça o que quiseres e te darei. E a única coisa que peço em troca é que, depois de usufruir do seu pedido, eu tenha a sua companhia no meu lar, pela eternidade...
A mão de João agora tremia mais do que em suas crises de abstinência, quando precisava sair do trabalho para tomar um trago e conseguir trabalhar sem ser repreendido pelo seu chefe. Estava estático, mal conseguia respirar. As palavras do belo jovem ecoavam insistentemente em sua mente: “Peça o que quiseres e te darei”. E foram justamente essas palavras que o fizeram tornar a si.
“O que quiseres”. Essa poderia ser a oportunidade que João sempre esperou. A oportunidade de ser feliz, de ser alguém, de ter orgulho de viver, de ser. E então se recordou das outras palavras: “a única coisa que peço em troca é que, depois de usufruir do seu pedido, eu tenha a sua companhia no meu lar, pela eternidade”. A princípio isso o fez estremecer mais ainda, mas afinal o que poderia ser pior do que a vida que  tinha? Já vivia o inferno e sabia que sua alma já estava condenada, não importava que mais acontecesse. “Porra João”, dizia a si, “agora não é hora de ter medo, essa pode ser sua única chance, não deixe-a escapar!”
E então João entusiasmou-se com a proposta do belo jovem. Mas o que pedir? A primeira coisa que veio à sua mente fora o amor de sua ex-esposa de volta. Mas por quê? Pra ela abandoná-lo de novo depois de alguns anos, como fez da última vez? Pelas horas de reclamação depois dos quase 10 minutos de sexo mediano? Não, não valeria a pena desperdiçar esta oportunidade com uma nova decepção. Precisava pensar mais alto!
E que tal um emprego melhor, talvez a chefia do seu departamento, ou melhor, de toda a empresa! Mas por que pedir um emprego? Queria mesmo ele ser escravo de uma rotina sufocante, lidar com funcionários imbecis, desperdiçar horas de sua vida agradando a clientes igualmente imbecis? Não, pense alto João! Pra quê emprego se você pode pedir dinheiro, muito dinheiro, riquezas infinitas? E então poder viajar, ter as prostitutas mais lascivas do mundo, comer do melhor, beber do melhor, fumar e cheirar do melhor!
Mas de que valeria tudo isso? Viajar pelo mundo, para encontrar pessoas igualmente repugnantes como as quais já convivia no seu dia-a-dia, com a única diferença de falarem outras línguas? E de que valia ter as melhores prostitutas se elas só disfarçariam o asco por ele em troca do seu michê? E de que adiantaria comer do melhor, se depois poria tudo para fora junto com sua bebida? E sua saúde já estava muito abalada para poder usufruir do prazer de fumar ou cheirar do melhor... E pedir saúde não estava em cogitação, não pretendia ele aumentar seu tempo de vida em meio a tantas desgraças.
Só um pedido João. Mas o que pedir, o que valeria a pena?
Por que não uma pessoa com quem conversar? Um amigo verdadeiro que o entendesse, alguém para acabar com sua solidão, alguém que compartilhasse sua ideia de mundo e da vida, alguém que o compreendesse, alguém igual a ele! Mas se João odiava a si próprio, por ser como era, como poderia sentir prazer em conversar com alguém parecido a si mesmo?
E assim João varou madrugada adentro, tentando aproveitar da melhor maneira possível aquela oportunidade, sabendo que estaria condenado ao lago de fogo eterno depois de ter usufruído de seu desejo. Mas quanto mais pensava, via que tudo na vida era ilusão, nada valia a pena, qualquer pedido que verbalizasse apenas recriaria as decepções que já vivia.
E depois de horas e horas de conjecturas, quando o dia já começava a invadir a casa pelas frestas de sua madeira, quando o canto dos primeiros pássaros na rua começavam a se fundir com o barulho dos carros e ônibus trafegando pelo asfalto e com o choro do bebê do vizinho que acabara de acordar clamando pelo leite que traria mais algumas horas de saciedade antes da fome novamente torcer seu estômago, João olha para o belo diabo louro, que se mantivera todo esse tempo calmamente sentado e com aquele belo e sereno sorriso nos lábios aguardando sua decisão, e então João pronuncia seu pedido, a única coisa que encontrou que fizesse valer mais alguns minutos nessa vida:
— Quero outra garrafa de cachaça.