Paladar

Alana corta a carne, enquanto o cheiro da cebola picada dourando na manteiga toma conta da antes triste atmosfera da casa. Corre de um lado para outro da cozinha, joga o restante do tempero na panela, baixa o fogo pra não deixar queimar, dá um último arremate no corte da carne, mistura, experimenta. Está ficando bom! O jantar desta noite com seu amado vai ser perfeito!
Há muito aguarda por esta ocasião. Muitas coisas aconteceram nesses últimos meses entre os dois: indiferenças, desconfianças, reclamações, brigas, separações... Mas agora tudo retomou o seu caminho, agora o coração do seu amor retornou para suas mãos. Alana evita as más lembranças, agora ela está feliz e é isso que importa. Toda a dor sofrida, a insatisfação latente e exposta, a dúvida do amor não correspondido, aquela tarde de domingo em que ele viu refletido nos olhos lacrimejantes dela o monstro que ele era, tudo isso ficou para trás. Agora Alana só pensa em apagar da memória as más recordações e se concentrar apenas no jantar desta noite, uma comemoração ao recomeço de sua vida.
Abre o vinho para deixá-lo respirar, arruma os talheres, acende as velas, verifica a arrumação da mesa. Está tudo perfeito! Acende um cigarro enquanto aguarda o ponto da carne e a fumaça branca, elevando-se e esvaindo-se, a faz relembrar os bons momentos em que passaram juntos: a noite em que se conheceram, ele bêbado, ela tentando chamar sua atenção, até enfim conseguir o primeiro beijo, o dia em que começaram a namorar, ele a alertando, “tenho facilidade para magoar as pessoas” e ela respondendo “quero correr o risco”, as pizzas e as almôndegas industrializadas que ele preparava, consequência de seus parcos dotes culinários, mas que ainda assim ela adorava, os cigarros que aprendeu a junto com ele fumar, o show do cantor preferido dele e o da banda das músicas preferidas dos dois que eles voaram para assistir, as partidas de bilhar em que ele deixava-a repetir as jogadas que errava, as tardes abraçados assistindo a filmes antigos, o cheiro da carne começando a queimar... A carne! O cheiro desperta Alana de suas recordações e ela volta correndo para a cozinha para cuidar do jantar. Desliga o fogo, complementa o tempero. Está pronto!
Senta-se à mesa, serve seu prato, enche com vinho sua taça e prova o primeiro pedaço: mastiga a carne macia e sente seu sabor adocicado, deleita-se com a refeição enquanto engole cada pedaço lubricamente. Dá um gole no vinho e brinda o seu amor. E então olha para a cadeira defronte, ocupada pelo corpo morto do seu amado, o peito aberto, manchado de sangue coagulado, deixando à mostra o buraco vazio onde outrora batia o coração que Alana acabara de preparar para o jantar.
Alana delicia-se com a visão do corpo inerte daquele que ela tanto amara, mas que tanto a fizera sofrer. Mas Alana ainda sente que falta algo. Então põe uma gota de pimenta sobre o pedaço do coração fatiado sobre seu prato e prova: agora sim está perfeito!
E assim, Alana continua com seu banquete, brindando essa feliz noite de libertação, comemorando o recomeço de sua vida.