Esperança

Depois de algumas horas à mesa do bar realizando uma análise da realidade, da realidade do mundo e da realidade de sua vida, suas perspectivas e pretensões, chegou ele à inevitável conclusão: o melhor a fazer era pôr termo à sua vida. Abriu a carteira, resto de algum animal cuja única herança para o mundo fora seu couro, e viu que lhe restava o bastante para uma última cerveja. “Se não posso levar esses trocados, pelo menos não deixarei de gastá-los”, pensou.
Enquanto o garçom lhe servia a última cerveja da noite, a última de sua vida, tentou nosso protagonista rever seus cálculos para afastar qualquer possibilidade de erro: sim, a conta estava certa. Após essa confirmação, começou a rever as considerações que o levaram à conclusão supracitada. Por mais que tentasse, não conseguia ele encontrar outra alternativa: desde que nascera, começara a morrer - como todos os mortais. Sua vida era um caos e por onde olhava via o caos. A dor e a angústia eram os elementos predominantes em todos os seres. A injustiça e a opressão eram visualizadas em todos atos humanos, desde uma simples conversa numa roda de amigos – onde a farsa é uma necessidade social – até nas páginas de jornal – “três corpos foram encontrados no bairro...”, “índice de desemprego aumenta novamente...”, “apresentação da Filarmônica de Berlim – ingressos: R$ 200...”.
Não havia alternativa. Estava preso na vida, condenado à morte. A única forma de liberdade, de força, era ele mesmo dar cabo à sua existência. Assim, não daria tal gosto a outros homens ou a algum Deus.
Terminou a cerveja, levantou-se e foi para casa. Chegando, entrou e olhou ao redor: restos de comida, restos de cigarros, resto de vida. Contemplava agora o lugar sob nova perspectiva. O que outrora considerava um lar, via agora como um esconderijo, um lugar cuja única utilidade era fugir: fugir da realidade, fugir do mundo opressivo que existia lá fora. Ali podia deixar ele cair sua máscara e rir, chorar, drogar-se, masturbar-se e enfim, dormir... uma abstração da vida que era a experiência mais próxima da morte. O sono era a única situação que lhe trazia alívio. Por isso ia tentar ele o sono eterno. Dormir, dormir e talvez sonhar, mas não era essa a questão, pois se porventura lhe viesse o pesadelo, ao menos não seria ele concreto, como concreto era o pesadelo da vida.
Mas, vamos à ação: liberto de tais reflexões, começou a procurar instrumentos que lhe servissem para viabilizar a maior obra de sua existência. E não foi preciso muito: um pedaço de fio que encontrara no armário seria perfeito. Verificou sua resistência para certificar-se de que agüentaria seu peso. Perfeito! Apanhou uma cadeira, amarrou uma ponta do fio no caibro da casa desforrada e a outra ponta amarrou ao seu pescoço. Um leve movimento e a cadeira foi derrubada. E eis nosso herói dependurado. Instantaneamente sentiu o pescoço ser violentamente comprimido e a necessidade de ar. Porém, estava calmo, pois tinha certeza de que era isso que queria. Mas, a cada segundo aumentava a necessidade de ar – o que era esperado – e também o angustiante incômodo que a apnéia provocava – o que não era tão esperado. Por que demorava tanto?
Na tentativa de esquivar a atenção de seu sofrimento, olhou ao redor, tal como fizera quando chegara. E, da posição em que agora se encontrava, via que o cubículo que minutos antes lhe parecia tão abjeto, agora se mostrava um lugar aconchegante... Assustou-se com tal pensamento e, buscando distração enquanto esperava o fim que teimava em não chegar, continuou a percorrer seu olhar pelo ambiente. Nisso, viu o maço de cigarros sobre a mesa. E sentiu vontade de fumar. Tentando esquecer a necessidade de nicotina, desviou seu olhar. E o bailar de seus olhos acabou esbarrando na foto de sua namorada. E nosso jovem se arrependeu de não ter se despedido e conquistado um último beijo...
À medida que aumentava o clamor de seus pulmões por oxigênio, aumentava seu desespero, esse motivado não pelo que faltava aos seus pulmões, mas ao que sobrava aos seus olhos. Por todos os lados, via possibilidades de prazer, que agora jamais seriam por ele alcançadas: os livros na estante que não terminara de ler, os discos que gostava de ouvir e não mais seriam tocados, a garrafa de vinho que estava pela metade e não seria por ele terminada...
Tentando fugir de tudo isso, fechou os olhos e viu o erro que cometera. Compreendeu que, apesar das injustiças, opressões, mentiras e sofrimentos, sempre existe a esperança de prazer. E é justamente essa esperança que nos mantém vivos, que nos faz levantar todos os dias de nossas camas e enfrentarmos esse terrível mundo. A esperança de, em algum momento, alcançarmos alguma forma de prazer, nos dá força para vivermos no sofrimento e somente quando essa esperança se extingue, é que se extingue nossa vontade de viver. Mas essa esperança, agora via ele, ainda ardia em seu peito...
Desesperado, tentou ele desatar o nó de seu pescoço, mas o maldito estava muito apertado, tanto quanto distante demais estava o maldito caibro da casa, que não poderia ser alcançado por braço. E mais essa maldita vertigem, essa maldita escuridão que aumenta cada vez mais...

Se sonhou ou foi atormentado por pesadelos, nunca saberemos. Provavelmente nenhum dos dois. O certo é que dormiu e que, cinco dias após os acontecimentos daquela noite, a locatária da casa, acompanhada por alguns vizinhos, incomodados pelo fedor que o cadáver desprendia, arrombaram a porta e se depararam com a terrível cena do jovem dependurado. Após alguns gritos da locatária, o murmúrio de outros e as náuseas de todos, seguiu-se um instante de silêncio, quebrado por uma pequena senhora, mínima, até então imperceptível, que, depois de alguns momentos de contemplação, tentou explicar o acontecido:
— Pobre rapaz! Já não devia possuir nenhuma esperança na vida...