Solidão

Numa fria e solitária noite de sábado, a TV ligada assiste à minha vida passar dentro do claustrofóbico macrocosmo do meu escuro e soturno quarto. A tênue luz que o aparelho deixa escapar lança um brilho lânguido sobre as lembranças ao meu redor espalhadas neste taciturno claustro, lembranças das quais eu não desejava recordar, lembranças que me acompanham porque delas não consigo me livrar. Como as fotos de nossos momentos juntos que eu nunca mais consegui abrir, o disco que cantava nossa música que nunca mais consegui ouvir, os preservativos virgens esquecidos na gaveta do meu guarda-roupas, o telefone de tarifa barata do qual ela me ligava pra não dizer nada e nada dizíamos por horas e horas seguidas, os bilhetes rodoviários, agora já apagados, que eram nosso diário de viagem, viagens que quebravam as distâncias que nos separavam, distâncias que me fizeram tentar aprender a voar para poder quebrá-las, distâncias essas agora infinitas que nunca mais vamos conseguir quebrar...
E nesta fria e solitária noite de sábado me vêm à tona do pensamento as noites que passávamos juntos, noites embriagadas, noites viradas em quartos imundos de hotéis baratos a nos amar, noites na areia da praia esperando o tempo passar, acompanhados pela irritante e adorável amiga que não parava de tagarelar, as duas tendo ataques de risos que pareciam nunca mais terminar, noites na mesa de bares esperando o álcool nos inebriar, no réveillon nos beijando com o brilho dos fogos a nos iluminar escutando a música que dizia que ao mar ela tinha ido se afogar, no litoral vendo o carnaval passar bebendo aquele vinho branco que nunca mais conseguimos comprar e aquela noite ingênua na praça, debaixo da palmeira, onde viramos namorados e nos prometemos voltar depois de um ano passado para noivar, praça essa na qual nunca mais vamos nos reencontrar...
E nesta fria e solitária noite de sábado relembro também os dias em que com um beijo ela vinha me despertar e as tardes que ela vinha alegrar, passadas em bares secretos e surrealistas onde cadeiras passeavam pelas calçadas e sacolas bêbadas voavam pela rua sem saída de prédios em ruínas com janelas com grades eletrificadas, músicas inconcebíveis saindo da juke-box e onde todos os bêbados e mendigos da cidade vinham nos felicitar por sermos o casal mais lindo que já puderam encontrar. Recordo nossas jornadas desesperadas por algum boteco aberto no domingo, os jogos que assistíamos, ela sempre torcendo contra, mas que meu time sempre ganhava, tardes ociosas em que ela dormia em meus braços e sempre me pedia mais “cinco minutinhos” quando para sairmos eu a acordava, tardes essas agora distantes e que juntos nunca mais vamos passar...
E nessa fria e solitária noite de sábado recordo também os espinhos que surgiram nesta linda roseira, que apesar de afiados e cortantes não puderam de todo macular a lembrança de sua beleza. Lembro o festival onde, antes de conhecermos a verdade, promíscuos e drogados, nos arrependemos depois de não sabermos aproveitar e o encontro onde, covarde e egoísta, dela tentei me livrar e mais tarde, vendo que isso era impossível, sofrido e arrependido, fui me desculpar, e ela, terna e amável, me convenceu que valia a pena tentar e que depois, eu e ela, confessamos nos amar. Também me vem à mente aquela noite ciumenta, onde resolvi ela deixar, descontei minha raiva na garrafa de vinho e pela cidade desconhecida fugi a chorar, correndo por trilhos empoeirados com cachorros a ladrar, descobrindo o caminho por informações de desconhecidos que pelo caminho queriam me evangelizar, cambaleando por escadarias sorrateiras, ruas mal-iluminadas e pontes desertas e na manhã seguinte sendo acordado por batidas na porta do meu esconderijo que ela conseguiu encontrar. Recordo também os vícios que ela não conseguiu abandonar, os dias e noites em que deixou de me telefonar, as declarações de amor que se recusou a aceitar, as companhias pérfidas que à minha preferiu trocar, as decisões que sozinha decidiu tomar, as mentiras que preferiu contar, as verdades que preferiu ocultar, a confusão em minha mente, o redemoinho negro nos meus olhos, o doloroso estrondo seguido do pavoroso silêncio...
E assim, agora frias e solitárias são as minhas noites de sábado e todas as demais, enclausurado no claustrofóbico macrocosmo do meu escuro e soturno quarto, a TV ligada lançando seu tênue brilho lânguido sobre os resquícios do meu sempre presente passado e me assistindo a chorar...