Fome

O sol cai vagarosamente no horizonte e pinta o céu de um amarelo escarlate, sob o qual meninos descalços correm pelo campo de terra atrás de uma velha bola de couro. Gritam desesperadamente como se não precisassem usar suas vozes nos dias de vida que ainda lhes restam, perdem o fôlego perseguindo aquela esfera que rola loucamente de um lado a outro do campo e se extasiam quando ela ultrapassa a linha imaginária criada pelas latas de tinta que improvisam as traves. Mais ao lado do campinho, onde ainda restava um pouco de grama, meninas brincam com suas bonecas, fantasiando um mágico futuro de donas de casa cuidando dos seus maridos, de seus filhos e dos afazeres domésticos, todos observados pelas mães que se descuidam da vigília esporadicamente para compartilharem seus pontos de vista sobre a vida dos vizinhos.
Em sua casa, na ponta dos pés, Luísa, ainda pequena para seus seis anos, observa tudo com entusiasmo, como se ela estivesse ali correndo atrás daquela bola ou brincando com as outras garotinhas e suas bonecas naquela fantasia de felicidade. As Luzes dos postes já estão completamente acesas quando sua mãe a chama:
— Luísa, vá lavar as mãos. A janta tá pronta.
Apesar do imperativo da mãe, Luísa continua a admirar a pintura do fim da tarde desenhada dentro da moldura da janela da sala, como se quisesse gravar aquela imagem nas pupilas para poder revivê-la quando fechasse os olhos.
— Luísa, não vou falar de novo.
À contragosto, Luísa despede-se da vida lá fora e dirige-se à pia do banheiro. Lava suas mãos, seca-as e caminha vagarosamente para a cozinha, seus pezinhos roçando a madeira do assoalho como se deslizasse entre os sulcos das tábuas. Nunca gostou daquele assoalho, achava-o feio, fedia quando a mãe passava o pano molhado na casa alugada, mas sempre gostou da sensação que lhe dava aos pés. Chega à cozinha, senta-se à mesa, onde seu prato já estava posto, pega a colher, enche-a e só então repara no olhar de reprovação da mãe. Aí Luísa se lembra que deve fazer sua oração antes das refeições. Sua mãe lhe tinha ensinado que, sempre antes de comer, devia agradecer a Deus pela comida que Ele punha à mesa. Então Luísa deita sua colher de volta ao prato, fecha os olhos e junta as mãozinhas para fazer seu agradecimento.
O que a sua mãe não sabia é que há muito Luísa não mais orava. Depois de tantas orações pedindo bife e batata frita e sempre comendo arroz, feijão e, de vez em quando, aquele frango ensopado, mais caldo do que frango, Luísa não tinha mais nada a agradecer. Nem mesmo estava com fome, mas a mãe sempre insistia naquela janta ao início da noite. Dizia que Luísa precisava dormir cedo, mesmo sem sono, por causa da escola, e dormir de barriga cheia à noite fazia mal. Então Luísa agora só fechava os olhos, juntava as mãos, contava até dez e, quando novamente abria-os, via o sorriso da sua mãe orgulhosa pela disciplina da filha. Luísa nunca entendeu porque sua mãe não fazia sua própria oração. Será que ela também tinha desistido de pedir pra comer bife e batata frita?
Sua mãe também se senta e as duas começam a comer, quando Luísa pergunta:
— Mãe, cadê o papai?
— Não sei, nessa hora já era pra ter chegado. Deve ter parado no bar de novo.
O frango desceu seco pela garganta de Luísa. Todas as noites em que seu pai chegava bêbado em casa a cena se repetia: ele entrava meio cambaleante pela porta da sala trazendo balas e chicletes para ela, abraçava-a com aquele cheiro forte de suor na camisa e de bebida azeda na boca e depois ia beijar sua mãe. E logo começava a discussão: a mãe se irritava com seus beijos e suas carícias, dizia que ele estava fedendo, que ele tinha prometido parar de beber e então o pai se irritava por causa das reclamações, respondia que se matava de trabalhar todos os dias na obra para pôr comida na boca das duas e que tinha o direito de tomar umas cervejinhas de vez em quando, e a mãe rebatia que não suportava mais aquela vida, que qualquer dia pegaria Luísa e iria morar na casa da mãe, e a discussão se alongava, ele gritando palavrões de um lado, ela chorando do outro, até que chegava o inevitável momento em que seu pai jogava no chão a primeira coisa que via à sua frente, pegava a garrafa de cachaça escondida debaixo da pia e ia sentar-se em frente de casa para beber e fumar. Luísa sempre assistia a essa cena sentada no sofá da sala, em frente à televisão, mascando os chicletes e chupando as balas que seu pai trouxera.
E seu pai só se levantava de lá da frente da casa bem de noite, quando Luísa e sua mãe já estavam deitadas e as únicas coisas que ela conseguia ouvir de sua cama eram os grilos cantando no campinho, o ronco baixo de sua mãe no quarto ao lado e as batidas do próprio coração enquanto ela se agarrava no lençol como se dele quisesse fazer um escudo que a tornasse invisível para o mundo. Queria dormir mas não conseguia, fechava os olhos com força para rever aquela cena das crianças lá fora ao final da tarde e se imaginar entre elas, mas o que Luísa, mesmo sem abrir os olhos, sempre acabava vendo era a porta do seu quarto se abrindo e seu pai andando nas pontas dos pés para deitar-se junto dela.
Tentava fingir que dormia, talvez assim ele a deixasse em paz, mas inevitavelmente Luísa sentia o fedor do seu pai no seu pescoço, sua mão áspera levantando o lençol, subindo sobre suas pernas e entrando por baixo de sua calcinha. Seu dedo a machucava enquanto Luísa ouvia seus gemidos abafados, como se do mesmo jeito estivesse doendo nele também. O que Luísa não entendia é que, se o machucava, porque ele sempre fazia aquilo? Será que agora era isso que estava acontecendo também com aquelas crianças que brincavam em frente à sua casa todas as tardes?  
E aqueles gemidos continuavam, cada vez mais rápidos, até que finalmente, depois de alguns minutos, cessavam num suspiro. Então Luísa por alguns instantes ouvia somente o silêncio para depois escutar os leves sons do seu pai se levantando da cama, dos seus passos caminhando para fora do quarto e, logo depois, da água caindo do chuveiro no banheiro.
Nas primeiras vezes que seu pai se deitou com ela, Luísa tentou reagir, se debater, chamar pela mãe, mas ele tapava a sua boca, segurava seus braços finos e dizia pra ela ficar quietinha, que ele só estava brincando com ela, que no outro dia ele lhe traria mais balas e chicletes, e dizia para ela não contar nada para a mãe, pois ela iria ficar brava e iria embora morar na casa da avó de Luísa, deixando os dois sozinhos.
Apesar do temor, numa tarde, enquanto almoçava com a mãe, ainda sentindo a dor debaixo de sua calcinha, Luísa revelou que não gostava das brincadeiras do seu pai. Ela viu os olhos de sua mãe brilharem, como se estivessem molhados, antes dela, irritada, mandá-la parar de inventar coisas, que tudo o estava dizendo devia ser um sonho e que não queria ouvir mais Luísa tocando nesse assunto, com ela e com mais ninguém. Nesse dia Luísa tinha quase certeza de que ouviu sua mãe chorando no quarto mais à tarde.
Depois desse dia sua mãe não mais a deixava sair de casa, a não ser para a escola, e até as visitas à casa de sua avó escassearam. Luísa se sentia culpada por não querer brincar com o pai.
E agora Luísa está cabisbaixa em frente ao seu prato, com a colher na mão, sentada na cadeira, balançando seus pezinhos no ar, sabendo o que estava prestes a novamente acontecer quando todos deveriam estar dormindo. Será que ela deveria novamente falar com mãe? Talvez se ela fosse mais clara...
— Mãe, eu não gosto do papai não.
Luísa teve a impressão de que a mãe segurava um soluço quando a respondeu:
— Cala a boca e come menina!