Catarse

Algumas noites são mais negras que outras. Como aquela noite na qual seus lábios ouvi pela última vez.
Do outro lado do telefone minha voz rouca e afônica, pronunciando palavras ininteligíveis de um texto decorado, não conseguia esconder a improvisação construída das minhas vísceras, frases anêmicas que simulavam sentimentos enquanto o verdadeiro sentimento sufocava no grito aprisionado na minha garganta. Enquanto contigo fingia me expressar, vasculhava nas lembranças qual fatídico momento daqueles oito meses incompletos germinou a semente que brotou tão esquálido diálogo. Mas não conseguia identificar em qual instante os beijos deixaram de ser doces, as declarações apaixonadas passaram a ser recriações mal interpretadas de um teatro romântico, em qual ocasião os sorrisos foram se tornando máscaras para a insatisfação, em qual momento a cumplicidade se tornou oposição. Talvez no nosso universo mútuo, num instante imperceptível, um big-bang de individualismo e egocentrismo, desde o primeiro beijo concebido, tomou vida e aspirou, pela primeira vez, o ar da indiferença.
O útero vazio deste diálogo pariu prematuramente o fim do nosso relacionamento natimorto, vomitou no mundo mais uma lembrança a vagar como fantasmas em nossas lembranças noturnas. No amor, doamos parte de nossa alma ao outro; somente quando chega o fim é que percebemos o quanto ela ficou mutilada.
Mas todo futuro é incerto, todo presente é efêmero, todo passado é eterno. Se algum dia passamos nossas cabeças por entre a vagina de nossas mães, temos que tomar deste cálice da vida e sorver do seu vinho, por mais que este seja amargo. Pois aqui estamos: desejo que sejas feliz minha linda, em memória dos momentos felizes que me concedeu. Se sem ti serei feliz, ainda não sei. O certo é que, para mim e para ti, a angústia da incerteza e a certeza da decepção não mais corroerão nossas almas. E que mais uma vez estamos livres para nos beijos, nos abraços, nos sorrisos e na cumplicidade de outros, buscarmos novas decepções.